sexta-feira, 18 de junho de 2010

Ensaio sobre um livro

Faleceu hoje o autor de um dos livros da minha vida.
José Saramago. Português. Comunista. Nobel. Polémico.
Rude, talvez.

Sempre me mantive à parte das polémicas (que maioritariamente surgiram no pós 25 de Abril e nos últimos anos em arrufos com a igreja). Não é de polémica que quero falar. É de um livro.

A minha mãe é fã de Saramago há longos anos. Leu tudo o que havia para ler e em tempos de aniversário ou de natal, em caso de livro novo, a prenda estava facilmente escolhida. Sempre mantivemos a colecção de livros dele (de edição simples, beje, todos iguais por fora), da Caminho. Ela lá me ia dizendo: "E devias ler, e porque é um dos melhores escritores portugueses, e olha que vai entrar para o programa de 12º de Português, e ganhou o Nobel, e isto, e aquilo". Mantive-me na pura preguiça de ler Saramago até há uns anos atrás, até que, não me lembro bem em que ano mas já estava na faculdade, racionalizei. «Mãe, quero ler Saramago. Tem de ser. Qual é assim o melhor para começar? Assim, o menos chato?»

"Ensaio Sobre a Cegueira", respondeu quase sem hesitar.

Comecei sem expectativas, reticente, de pé-atrás. "Que estranho... ", lembro-me de ter pensado após as primeiras páginas. "Isto é muito à frente..."

Pouco tempo passou, e já a história me tinha agarrado como nenhuma outra. Ao ponto de voltar atrás para ler de novo, para que nada me passasse ao lado, para absorver todas as palavras e todas as descrições. Lembro-me de inúmeros momentos do livro (apesar da minha habitual fraca memória para recordar passagens, cenas de filmes, diálogos... Normalmente só me lembro do fio da narrativa). O momento inicial do semáforo. O momento das camaratas. Do relato das pilhagens aos supermercados. Dos bons e dos maus. Dos maus pedirem mulheres... e da união entre elas. Da velha e das galinhas.

O Ensaio sobre a Cegueira é pesado. É duro. É feio. Impróprio.

Mas relata de forma brilhantemente real a existência humana quando levada ao extremo. É ficção. Mas poderia ser, tristemente, tão verdade. Reli-o três e quatro vezes. E sei que hoje vou lê-lo de novo. Porque sim. Porque não quero esquecer a grandiosidade humana daquelas palavras.

Não li mais nenhum livro de Saramago. Não preciso. Fiquei plena. E a perfeição do Ensaio sobre a Cegueira leva-me a recear a desilusão com os outros livros.

Fiquei estupidamente orgulhosa e vaidosa quando soube da versao cinematográfica de Fernado Meirelles (realizador do épico Cidade de Deus). Não imaginaria outro realizador para o fazer e, mesmo não sendo o filme tão perfeito como o livro (como tantos outros), adorei. Claramente as imagens nem sempre correponderam à minha imaginação - que era claramente mais suja - mas acredito que seria muito difícil fazer melhor.


Um bem-haja a José Saramago (sem polémicas).
Obrigada.

6 comentários:

david disse...

nunca li nada dele.

não porque não goste de ler. adoro ler. apenas porque nunca tive curiosidade.

confesso que despertaste um pouco mais da minha curiosidade. quiçá, num futuro próximo, leia algo sobre "o nosso nobel".

Anónimo disse...

Acho que os leitores deste blog vão começar hoje a ler o ensaio sobre a cegueira!
E essa é a melhor homenagem que lhe podemos fazer, até a nós próprios!
Mas não devemos parar nesse, devemos e podemos começar...
O Ano da Morte de Ricardo Reis, O Memorial do Convento, Levantado do Chão, História do Cerco de Lisboa (foi por esse que me iniciei) são livros que nos enchem a alma
Quem não conhece o Baltasar Sete Sóis e a Blemunda não conhece a grandeza de Saramago!!!!
Porugal ficou mais pobre mas pode ser que funcione como uma "mola" para lhe darmos mais atenção...

NaLua disse...

ACA,

eu sou fanzaço de SARAMAGO e já li uns 8 livros dele... mas mais do que escritor, gosto dele enquanto provocador e enquanto pensador. Comparo-o ao Prof. Agostinho da Silva na sua capacidade de questionar tudo.

Que génios!

Fábio Silva disse...

Bem, tu conheceste-o com Ensaio Sobre a Cegueira, eu conheci-o com Ensaio Sobre a Lucidez. Livro este que apesar de não ter tantos aplausos dos críticos como o primeiro, não deixou de ter um forte impacto em mim. Tinha eu então dezasseis anos, e estava longe de perceber realmente a mensagem que ele transmitia. A verdade, creio eu, é que à sua maneira Saramago sempre tentou tirar-nos da cegueira. Aliás, lembro-me de lhe terem perguntado como surgiu a ideia para escrever Ensaio Sobre a Cegueira, ao que ele responde algo como:
«Primeiro pensei: E se todos de repente cegássemos? Depois percebi que na verdade já estamos todos cegos.»
Mais de que um escritor, mais de que um Nobel,um Imortal. Tal como a tua mãe te pediu que lesses Saramago, o mesmo farei com os meus filhos, eles com os seus, e por ai adiante. ;)

Sininho disse...

Cá por casa também abundam os livros do Saramago, mas, infelizmente, apenas li um: "Terra de Pecado", há muitos anos. Tenho pena de ainda não me ter dedicado à sua obra, mas a minha lista de livros para ler é interminavel...
Ao contrário do que se diz, os livros deste autor têm uma leitura bastante acessível.

Ana Catarina disse...

Eu li o livro, vi o filme e esperava mais do filme!
Gostei do que li aqui pelo teu Blog :)