Quarta-feira. 01h30 de uma noite fria de Março. Ruas silenciosamente perigosas e vazias de um, dizem, deprimente subúrbio de Lisboa. Não há pessoas. Não há autocarros, nem metro, nem táxis. Só os carros de quem vai para casa porque amanhã é dia de trabalho passam em excesso de velocidade e o cigarro ou o telemóvel não deixam o condutor olhar para os lados. Mas eu olhei. E vi. Não abrandei. Mas continuei a olhar pelo espelho. Algo mexeu.
A um décimo da minha velocidade, a subir a rua cuja inclinação vai aumentando, vinha um vulto curvado. Manta enrolada no corpo e na cabeça. Dois generosos sacos de rafia e uma canadiana nos braços que tremiam. Passo a passo, devagarinho como uma criança que aprende a andar. Em 20 segundos subi a rua, fiz inversão de marcha e voltei para trás. Não sei porquê.
«Boa noite... A senhora vai para onde?», saiu-me de mansinho não fosse a velha recear alguém de má fé.
«Oh menina, vou ali para cima...», respondeu-me sorrindo sem medo.
«E vem aqui sozinha a esta hora? Entre lá que eu dou-lhe uma boleia...»
«Oh menina, obrigada, muito obrigada (dizia-me enquanto entrava a muito custo no meu carro), sabe: é que sofro de artroses e...»
O resto podem imaginar.
«Olhe menina, o meu filho mora ali mais acima mas a mulher dele não quer saber de mim... A minha mais nova tem uma filha deficiente, coitadita... E eu aqui venho, depois de estar com o meu marido lá no hospital ali em S. Marta, ‘tá a ver...? E a menina o que é que faz...? Ah, é jornalista! Aparece na televisão, é...?»
500 metros mais acima deixei a D.Natália - com um sorriso enrugado, artroses e tudo o resto - de 84 anos, à porta de sua casa. Queixou-se de mil coisas. Agradeceu-me dezenas de vezes e abençoou-me outras mil.
A mim e aos meus, claro.
sexta-feira, 30 de abril de 2010
D. Natália (oh menina, deixe lá o "dona"...)
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2 comentários:
Bem vinda sejas a estas paragens.
Este Blog é já defunto mas serve como porta de entrada para eu visitar e seguir de perto outros Blogs que gosto.
Ler-te-ei.
;-)
NaLua
Obrigada. Espero que gostes!
O Balão de Ar Quente será um blog informal e humano. Com muitas sugestões, algumas futilidades, e o maior número possível de histórias. Histórias das pessoas com quem me cruzo e que, de alguma forma, me transmitiram algo de especial.
Tal como a D. Natália. Que foi o pontapé final para este, agora, festival de balões de ar quente.
Bem-haja*
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